Contra a besta-fera

Fiquei muito feliz em ver o resultado do nosso trabalho sendo reconhecido como uma grande contribuição para a ciência e a sociedade, vejam os destaques na reportagem a seguir:

Notícia

Revista Piauí

Contra a besta-fera

Publicado em 01 julho 2020

Por Claudio Angelo

Na terça-feira de Carnaval, enquanto o Brasil se entregava à folia e, de modo sorrateiro, a vida se transformava radicalmente, o telefone do virologista Edison Durigon tocou em sua casa em São Paulo. Do outro lado da linha, o patologista João Rebello Pinho, que trabalha no Hospital Albert Einstein, um dos mais conceituados do país, transmitiu uma informação: “Estamos com o primeiro caso.” Em seguida, fez a pergunta previsível: “Não quer isolar?”

Um homem de 61 anos vindo da Itália dera entrada no Einstein com sintomas de Covid-19. Desde janeiro, a comunidade médica e os cientistas sabiam que era uma questão de tempo até que a doença chegasse ao Brasil. Agora, era hora de “isolar”. Ou seja: isolar e multiplicar em laboratório o vírus Sars-CoV-2, o agente causador da doença. Era o passo fundamental para começar a desenvolver o diagnóstico e iniciar as pesquisas em busca de um medicamento. Pinho sabia que Durigon era a pessoa certa para fazer isso.

Pesquisador com mais de 36 anos de experiência, Durigon liderou a força-tarefa que isolou o zika vírus no Brasil, em 2016. Na época, ele recebeu uma amostra do microrganismo, extraída de um paciente no Ceará, multiplicou o bicho, colocou cópias dentro de embalagens triplas, para evitar qualquer risco de contaminação, e distribuiu as cópias pelo correio, pagando o Sedex do seu próprio bolso. As remessas, feitas para dezenas de laboratórios brasileiros, foram decisivas para que o país se tornasse líder mundial nos estudos sobre o zika vírus e viesse a comprovar que ele, ao contagiar gestantes, provocava microcefalia nos fetos.

Aos 64 anos, Durigon faz pesquisas no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP). Há uma década e meia, ele se interessou em trabalhar com os coronavírus, da família causadora da Covid-19. Em geral, os coronavírus são vírus respiratórios quase inofensivos. Afetam nariz e garganta, e causam, para emprestar um termo tornado infame, “gripezinhas”. De cada dez resfriados comuns, três são provocados por coronavírus. Naquele Carnaval, por exemplo, havia três pessoas infectadas com um desses coronavírus leves trabalhando no laboratório do ICB. Mas, comparado com boa parte de seus parentes, o novo coronavírus é uma besta-fera, e já se sabia disso antes que chegasse ao Brasil. Transmitido pelo ar e altamente contagioso, ele precisava ser manipulado dentro de um laboratório com um nível elevado de biossegurança, o nível 3, conhecido como NB3. O primeiro NB3 do Brasil é o laboratório do ICB, que foi montado por Durigon e seus colegas.

Ao custo de 1 milhão de dólares, o laboratório foi inaugurado em 2003, época em que a ciência brasileira tinha o luxo de se preparar para ameaças futuras. No ano 2000, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) investira 8 milhões de dólares para treinar e equipar uma rede de laboratórios de virologia, com o objetivo de estudar vírus endêmicos (como o HIV) e emergentes (como o letal hantavírus). Em 2003, com o laboratório NB3 já concluído, deu-se o surto da perigosíssima gripe aviária H5N1, que mata cinco em cada dez pacientes. Felizmente, a gripe não chegou ao Brasil. “Graças a Deus, senão não estaríamos conversando agora”, disse Durigon.

Em um laboratório NB3, pode-se manipular organismos altamente infecciosos e que se espalham pelo ar. A instalação tem pressão do ar negativa, o que significa que, quando suas portas duplas são abertas, o ar de fora é sugado para dentro, a fim de minimizar a chance de escape de algum microrganismo. Suas paredes têm meio metro de espessura, ar constantemente filtrado e renovado, e um autoclave por onde as roupas passam sob um vapor de 120ºC para matar eventuais agentes infecciosos. O acesso é estritamente regulado, e quem entra ali deve seguir um ritual de paramentação, numa ordem meticulosa: sapatilhas descartáveis, um macacão especial de corpo inteiro feito de material impermeável, um par de luvas de látex que são presas ao macacão com fita adesiva em volta dos pulsos, botas impermeáveis, um segundo par de luvas sobre o primeiro, gorro, uma máscara rígida do tipo N95, óculos e escudo facial, desses que viraram imagem corriqueira nos noticiários. A jornada de trabalho pode chegar a seis horas – sem água, sem comida e sem banheiro, com troca constante de luvas e, na saída, dois banhos, um com cloro desinfetante e outro com água pura. Por segurança, ninguém pode trabalhar sozinho numa instalação dessas……..

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